quarta-feira, 21 de abril de 2010

Água no mar


Não se vai a praia em dias de chuva, diz o senso comum.
Eu vou; encontrar o estranho que me quer...

Dias de chuva são os melhores para se ir a praia. Dias de mar bravo, vento insolente, areia sorrateira.
Praia com chuva é Iemanjá pedindo que nos lavemos antes de entrar no mar, por favor. Purificação primária. É como tomar um banho duplo, de cima a baixo.

Mas falta o sol, dizem.
Não falta nada.

Tem-se o mar e a chuva, eu e o estranho. Sem a presença do sol, inimigo dos amantes, tudo fica melhor. Sente-se como único calor o outro corpo, o nosso corpo, calor que arde sem se ver e que vai contra a meteorologia, impõe-se às águas da chuva e às águas do mar.

Deixa a cinza do verão ir embora.
Deixa a cinza do teu corpo partir.

As bocas continuam salgadas de maresia.
A chuva não tira o gosto quente de sal da tua boca.
Apaga os rabiscos na areia para tatuar realidades em ti.








Poema inédito da Martha Medeiros:


meu caro estranho, nossa estranheza nos levou à cama
e seguimos nos desconhecendo
não perguntei de onde vieram tuas cicatrizes
e não me perguntaste se eu já havia usado o cabelo mais curto
simplesmente nos beijamos e dispensamos todos os porquês
fui uma mulher qualquer e fostes mais um homem
e se esse descompromisso não merece ser chamado de amor
ainda assim não carece ser desfeito e esquecido

meu caro estranho,
mesmo nos amores não há nada muito além disso

domingo, 18 de abril de 2010

Masculino duplo

Nunca havia sentido vontade de ser homem, nem em suas revoltas e fantasias de infância, nunca.

Há algum tempo sentiu essa vontade... não de mudar de sexo, mas de sentir como um homem, ter liberdade de um homem, viver como vive um homem. Por admiração a um único homem. Vontade de ser ele.
Diz o poeta: Transforma-se o amador na coisa amada.

É estranho, e quase impossível, mais cedo ou mais tarde a mulher que na verdade ela é quer se materializar, escapar por entre os dedos na hora de sentir.

Ela precisa do abrigo, por mais que se queira livre, ela necessita ter, possuir. Uma mulher nunca é moderna o suficiente para não desejar, nunca.

E descobriu que na verdade queria morar dentro dele, num cubículo que fosse entre seu coração e seus pulmões, um lugar de onde pudesse conhecê-lo e desfrutá-lo, de onde pudesse misturar-se com suas vontades e valores, suas histórias antigas e seus conhecimentos infindos.

Ela nunca havia andado tão estranha, nunca.



Duplamente feminino

Mudou-se para dentro dele, levou seus livros e músicas preferidas, seus papéis inúteis e fotografias de infância.

Amalgamaram-se.

Ele feminilizou-se. Do masculino duplo fez-se visível o feminino. Delicado feminino do masculino. Fez-se então o que era duplamente feminino, dele e dela.

Ela não mais desejou sê-lo, pois agora eram uno, unidade platônica indissociável.
Não mais havia feminino e masculino distintos. Havia agora um ser só acompanhado. Metade metade que se completava.

A isso é que se nomeou Amor.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Desencanto

É tudo uma questão de ciclo



As coisas caminhavam por si mesmas quando uma pedra no meio do caminho do amor o fez tropeçar. Descuidado, não notou o obstáculo antagônico, preferiu perguntar e ter razão, com pouca felicidade; agora não desconhecia os porquês, não ignorava.
- Como somos desparecidos...
Veio-lhe a mente distraída de uma longa distância.
Cutucou a razão com vara curta, despertou Atena desapercebida.

&

Ela ficou em outra plataforma, do lado sem luz conhecido por si, desconhecido por ele. Ela era um estilete no escuro de um dia entre abril e junho. Não foi para a guerra, não lutou, despachou Atena e perdeu seu amor.






Ela X Ele na Cidade Sem Fim
Vanessa da Mata

Ela não tem preço
Nem vontade
Ela não tem culpa
Nem falsidade
Ela não sabe me amar
Ela não tem jogo
Nem saudade
Ela não tem fogo
Nem muita idade
Ela não sabe me amar
Ela não saberá

Coisa de amor
De irmão
Que ela insiste e que me dá
Toda vez que eu tento
Ela sofre
Poderia ser medo
Mas como é possível

Mas então seu amor não é meu
Nem eu o seu
Pois então que será minha amada
Amadora?

Ele não tem preço
Nem vontade
Ele não tem culpa
Nem falsidade
Ele não sabe me amar
Ele não tem jogo
Nem saudade
Ele não tem fogo
Nem muita idade
Ele não sabe me amar
Ele não saberá

Mas então seu amor não é meu
Nem eu o seu
Pois então que será meu amado
Amador?

Se eles não têm pose
Nem maldade
Eles não têm culpa
Nessa cidade
Eles não sabem amar
Coisas da vida

domingo, 11 de abril de 2010

Marinheira


Coloco meu barco em alto mar, sigo em frente sempre
Não tenho medo de ir, tenho medo é de voltar.
Vou pela contramão e nado contra a corrente
Canto contra a razão do coração.

Preciso me quebrar, morrer um pouco
Para recomeçar, ressuscitar.
Preciso naufragar.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Sexto sentido

Fui ao oráculo e pedi uma resposta, iluminação, epifania... algo que me guiasse nos descampados em que ando correndo, nua e só.

Minha resposta veio via e-mail. Vejam só, até Apolo já se modernizou.

Quem me respondeu foi Caio Fernando Abreu, disse-me que vou continuar batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo nesta porta que não abre nunca.

Creiu profundamente na minha sensibilidade e intuição, não tenho religião.

Porém mesmo tendo a resposta para minha pergunta, clara e internética, não posso deixar de me arriscar. Porque perguntei se já sabia? E se já sabia e perguntei, porque insisto?

Insisto porque acho feio desistir, não ir até o fim, abandonar o barco.

Acho feio fugir sem sentir a dor justamente para não sentí-la. Acho mutilação, colocar ponto final onde deveria haver reticências. Acho pobre e desleal.

E quem fechou a porta afinal?

Crepúsculo


Princesa ao avesso, adormeço ao beijo do príncipe
Caio em sono profundo e todos ao redor me acompanham
Tudo que vivo ao seu lado é sonho
lascas de sonhos
pedaços de névoa e nuvem
O nome da princesa não é Aurora
é Crepúsculo
espaço entrecortado e curto
espasmo de dia e sol
lusco-fusco
fim de começo

bela adormecida ao avesso

Como se houvesse aurora e o mar cantando atrás. (Manuel Bandeira)

quinta-feira, 8 de abril de 2010

perdido comigo


Fui pra longe, sumi por alguns dias. Na verdade não fui, perdi-me, na confusão de tanta noite e tanto dia, na profusão das coisas acontecidas, como diria Gullar.

Perdi-me entre estradas e casas estranhas, camas e cômodos indefinidos, lugares de não ser, de se fazer ato e concreto. De só sentir e ser feliz.

Só sentir e ser feliz foi um sonho meu um dia, resumir minha vida em pedra e cal, ser por fora o que tenho dentro, me partir em mil pedaços e continuar inteira.

O sonho de pedra e cal tornou-se construção concreta, torre de babel, arranha-céu.

Dizer que sumi alguns dias é só eufemismo: sumi por tempo indeterminado, abandonei; por ter petrificado o coração de tanto só sentir e ser feliz, por não mais sentir, e não ter mais ponto de parada para o pensamento.

Estando perdida não me penso nem tenho de escrever o jeito; a sensibilidade está aqui, presa como fóssil calcificado em âmbar, falta a alquimia da transformação do pensamento em palavra; falta. E falta o coração que ficou em alguma cama ou cômodo, estrada ou casa.

Preciso voltar ao lugar onde me encontro, onde nasço e morro todos os dias e renasço junto ao primeiro sol. Andei muitas vezes perdida entre ruas e automóveis desse lugar, perdida e amparada. Nas palmas de minhas mãos vêem-se refletidas suas ruas retas e estreitas, sem atalhos; nas suas ruas retas e estreitas estou refletido pequeno, sendo minhas mãos e suas ruas de uma amplidão sem conta. Encontro-o e ele me encontra. Nos conhecemos os dois perfeitamente.

Meu estranho lugar, onde sentir e pensar se amalgamam, onde o coração acelerado desorganiza a vida e organiza os sentimentos, onde minha intensidade segue a linha do coração de pedra, hermética sem falhas nem atalhos.

Estou voltando.

Mudou de cara e cabelos mudou de olhos e risos mudou de casa
e de tempo: mas está comigo está
perdido comigo


trecho do Poema Sujo, de Ferreira Gullar