segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Onde a dor não tem razão

Na casa da boneca, na torre do castelo que deixou de ser prisão e solidão. Vigésimo andar de pura felicidade, lar de amor puro. Portas abertas e mesa posta, corredores receptores, sofá acolhedor.

Tão cedo ainda e a casa da boneca foi invadida por risos que chegaram pro café, preenchendo vazios e brechas, ocupando os pequenos quartos.

Chegaram com mão vazias, mas prenhes de alegria, deixando cair brotinhos de felicidade, nos olhos uma inquieta agonia, corpos transbordando de energia.

Café com pão e lágrimas, entrecortado por sorrisos amplos que não cabiam na mesa, não cabiam na casa, adentravam uns nos outros.

O tempo não fez pirraça, correu como se deve correr um rio manso, cantando canção de ninar. Do que era pra ser triste brotou felicidade natural. Tornou-se maravilhoso o que era pra se mau.

Tudo era mãos dadas e calor de gente humana. E fora da casa da boneca tudo ficou menor menor menor menor menor...

sábado, 28 de agosto de 2010


“Quero experimentar você de novo”

Disse rapidamente no olhar entrecruzado, na rápida fixação, quase obsessão, de possuir o já possuído e amado.

Mas não por completo, abraços insuficientes e beijos inacabados. O que sobrou foi o “se” indeterminado, incalculado.

A chance impossível ressona nos sonhos de ambos, não como possibilidade, mas como dever de terminar o interminado.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010




Os movimentos das pernas determinam os caminhos.

Andar é como colonizar, ir para longe e lá encontrar seu lugar de origem, seu ponto comum.

Você segurou minha mão naquele dia e eu me senti feliz como índia, feliz como coisa possuída.

Mas a porta do novo mundo se abriu novamente e você soltou-me, suas pernas pediam outro caminho, oposto ao meu, encruzilhado em quatro bocas distintas.

Eu permaneci, no meio, mas perdida, pois as minhas pernas não sabiam por onde seguir, sem bússola ou mapa para descobrir, sem orientação e sem capitão.

Então cansei de estática e permanência, brincar de estátua moderna.

Segui o caminho indicado pela imanência do corpo e pelo desejo das pernas.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Método gilbertiano para digerir emoções


Digerir sentimento é que nem digerir alimentos, afinal sentimento é alimento de alma.

Preciso de tempo para digerir emoções. Tempo para que elas cheguem, entrem e sentem em seus devidos lugares. Aceito a lentidão do meu metabolismo emocional. Tem gente por aí que nem mesmo está a par disso, de que os sentimentos precisam de tempo para se acoplarem devidamente, sem sacolejar dentro em nós como peças avulsas de um dominó desfalcado.

Há pessoas que engolem as emoções sem o menor aparato culinário, sem sal e sem pimenta.

Há também gente muita magra, de metabolismo rápido, e são de dar inveja e pena, pois deixam a dúvida de serem vazias.

Há os gordos, lentos e sofredores. Guardam em si tantas emoções sem digerir ou apenas ruminadas, por serem esfomeados em sentir. Estão na verdade abarrotados, perdidos em meio a uma profusão emocional.

Eu tenho muita fome e pouco espaço para guardar tudo que quero comer, por isso escolho entre as frutas do tempo as emoções do momento.

E recomendo mastigá-las no mínimo 50 vezes e depois dá-las o repouso da digestão, como num imenso estômago de emoção. Mas nunca engoli-las por inteiro, como que morto de fome, pois as emoções não se dão a quem morre.




Morreu um rei, salve o rei que vai chegar

Não sei sofrer, não sei chorar, eu sei me conformar

Tin Tin Por Tin Tin/ João Gilberto

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Vento

Enquanto os cabelos secavam ao natural sentiu frio no corpo, frio na alma. Sentir frio não é das melhores sensações que um corpo possa sentir. Nem uma pobre alma. Galgou os pés descalços em chão frio e sentiu inteira um arrepio ruim, porém de uma necessidade de morte, pois morrer também é necessário. Às vezes.

Lembrou de Elis dizendo que Os corações viram gelo e, depois, não há nada que os degele e pensou em seu próprio coração, cravado fundo no peito e calado. Lembrava que possuía um quando sentia o arrepio fundo pedindo um pouco de calor, ou um pedaço de cobertor que o valesse, que o aquecesse.

Naufragado como um barco sem vela, encalhado como um navio sem rumo, a última vez que o sentiu não soube se era o seu mesmo que funcionava como um relógio antigo de parede ou se era o dele, tão próximos estavam.

Nunca soube separar o que sentia do que ele sentia. Não havia troca, apenas acompanhamento. Ela obedecia ao que ditava o coração dele, seu coração seguia à risca o outro coração. Por isso não separava os batimentos. Eram os mesmos que cronometravam o fogo e metrificavam o gelo.

Mas corações diferentes não podem bater iguais por muito tempo. A fogueira ou a geleira não são as mesmas. A intensidade do fogo de um pode não ser suficiente para derreter o gelo do outro. E o gelo do outro pode ser por demais intenso e apagar o fogo de um. É o momento em que desejam amar sem cronômetros ou métricas e ter-se apenas os batimentos como marcadores. Se o coração bate ululante ou recusa-se a dar voz.

Sentiu mais alguns arrepios e frio na barriga, enquanto ainda secavam os cabelos. Lembrou-se então que era inverno. E foi fechar a janela aberta.








As aparências enganam/Elis Regina
Composição: Sérgio Natureza/Tunai


As aparências enganam, aos que odeiam e aos que amam
Porque o amor e o ódio se irmanam na fogueira das paixões
Os corações pegam fogo e depois não há nada que os apague
se a combustão os persegue, as labaredas e as brasas são
O alimento, o veneno e o pão, o vinho seco, a recordação
Dos tempos idos de comunhão, sonhos vividos de conviver
As aparências enganam, aos que odeiam e aos que amam
Porque o amor e o ódio se irmanam na geleira das paixões
Os corações viram gelo e, depois, não há nada que os degele
Se a neve, cobrindo a pele, vai esfriando por dentro o ser
Não há mais forma de se aquecer, não há mais tempo de se esquentar
Não há mais nada pra se fazer, senão chorar sob o cobertor
As aparências enganam, aos que gelam e aos que inflamam
Porque o fogo e o gelo se irmanam no outono das paixões
Os corações cortam lenha e, depois, se preparam pra outro inverno
Mas o verão que os unira, ainda, vive e transpira ali
Nos corpos juntos na lareira, na reticente primavera
No insistente perfume de alguma coisa chamada amor.

domingo, 1 de agosto de 2010

Invernal

Os franceses costumam fazer arrumação de primavera. Eles abrem a casa para os ares floridos adentrarem. Fim de inverno, começo de primavera, e as janelas se abrem para a vida recomeçar.

Desorganizada por decreto, não me dou às arrumações. Não muito profundas. Estando no Brasil, tristes trópicos que só possuem duas estações bem definidas, em pleno julho, em férias de tudo, resolvi arrumar minha vida, iniciando por armários e papéis.

Minha arrumação é de inverno. Não abro minhas portas para os ares frios, apenas parto minha vida em duas, tento organizar o que na verdade não tem ordem. O verão não ajudou. Queimou todos os meus sonhos e planos de futuro. Talvez o inverno faça nascer algo para colher no meu jardim.

Duas estações: uma acende a outra apaga. O que irmana-as é a sempre acesa chama. Verão acende fogueiras de paixões, incandescentes labaredas de ilusões. Inverno vem não apagar de todo, mas para acalmar quem já muito se queimou.

Tudo deposto, tudo volta a seu posto de mito. Dizem que há rosas que nascem no inverno e amores que nascem da dor. É no frio que floresce o ipê amarelo. As folhas despencam e deixam brilhar as flores amarelecidas de frio e saudade do sol.

Resultado de arrumação: Roupas com cheiro de lembranças, gastas pela memória. Papéis inúteis guardados para ter utilidade, preencher os vazios solitários dos móveis. Caridade e reciclagem são seus destinos finais. Re-ciclo. Novo início. Revolução, volta ao começo.