quinta-feira, 8 de abril de 2010

perdido comigo


Fui pra longe, sumi por alguns dias. Na verdade não fui, perdi-me, na confusão de tanta noite e tanto dia, na profusão das coisas acontecidas, como diria Gullar.

Perdi-me entre estradas e casas estranhas, camas e cômodos indefinidos, lugares de não ser, de se fazer ato e concreto. De só sentir e ser feliz.

Só sentir e ser feliz foi um sonho meu um dia, resumir minha vida em pedra e cal, ser por fora o que tenho dentro, me partir em mil pedaços e continuar inteira.

O sonho de pedra e cal tornou-se construção concreta, torre de babel, arranha-céu.

Dizer que sumi alguns dias é só eufemismo: sumi por tempo indeterminado, abandonei; por ter petrificado o coração de tanto só sentir e ser feliz, por não mais sentir, e não ter mais ponto de parada para o pensamento.

Estando perdida não me penso nem tenho de escrever o jeito; a sensibilidade está aqui, presa como fóssil calcificado em âmbar, falta a alquimia da transformação do pensamento em palavra; falta. E falta o coração que ficou em alguma cama ou cômodo, estrada ou casa.

Preciso voltar ao lugar onde me encontro, onde nasço e morro todos os dias e renasço junto ao primeiro sol. Andei muitas vezes perdida entre ruas e automóveis desse lugar, perdida e amparada. Nas palmas de minhas mãos vêem-se refletidas suas ruas retas e estreitas, sem atalhos; nas suas ruas retas e estreitas estou refletido pequeno, sendo minhas mãos e suas ruas de uma amplidão sem conta. Encontro-o e ele me encontra. Nos conhecemos os dois perfeitamente.

Meu estranho lugar, onde sentir e pensar se amalgamam, onde o coração acelerado desorganiza a vida e organiza os sentimentos, onde minha intensidade segue a linha do coração de pedra, hermética sem falhas nem atalhos.

Estou voltando.

Mudou de cara e cabelos mudou de olhos e risos mudou de casa
e de tempo: mas está comigo está
perdido comigo


trecho do Poema Sujo, de Ferreira Gullar

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