terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Esfinge


“Eu sou uma figura de linguagem”, ele me disse, com ar de esfinge que se revela, deixando um mistério ainda maior no ar a ser descoberto, “decifra-me ou devoro-te”.

Das figuras de linguagem qual seria ele? Qual das figuras de linguagem ele seria?
Vou seguindo as pistas que ele me deu:

Na esfinge metafórica já tenho um bom começo. Belo como uma estátua de Apolo ou Baco, o tenho numa perfeita comparação. Ou pode-se levar em conta suas hiperbólicas verdades perfeitas... Mas e o gato nos olhos dele? Seria o contrário de uma personificação? E, se digo dele esses mesmos olhos ou o nariz de estátua grega, construo uma metonímia bem calculada. Levando-se em conta também sua eufêmica maneira com que fala das coisas todas, a antítese de claro/escuro que é todo ele e o paradoxo de seu interior com seu exterior, tão opostos que se unem e se completam num só.

E se me canso e digo que ele é todas as figuras de linguagem juntas e pronto, amalgamadas, é porque já o conheço bastante para dizer. Ou não conheço nada ainda.




Devorou-me.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

downtown

Moro num lugar afastado da cidade. Quando vou ao centro me lembro de você, menino.

As coisas que acabam sem que desejamos permanecem em nós por tanto tempo...
Em mim permanece latente uma paixão autêntica, aquela das pernas bambas, do frio na barriga, da voz presa na garganta, daquele desejo irrefreável e que vai ser para sempre, por toda vida, o melhor beijo.

Depois passei por amores calmos, delicados, ternos...
Tempos de pura felicidade, quando se é plenamente amada e quase ama-se... aí a gente finge que ama, repete, repete, repete para ver se acredita e vira verdade, mas não. O outro, inconsciente, percebe o quase-amor e deixa-o para ir em busca do amor. Amor frustrado, na verdade quase-amor, dói menos que paixão frustrada. Sempre haverá mais um quase-amor pela frente...

A paixão frustrada permanece latente, encubada por dias, semanas, meses, anos e anos, esperando enfim o momento de se escancarar, de dar o bote. Mesmo sabendo que não dá, que um não serve para o outro ou [pior] que um não quer o outro, ela permanece incrustada. E, por pura maldade, permanece incrustada nos dois; a gente sente, a gente vê, quando por um descuido ela foge de um olhar para o outro, fixando o que deveria ser apagado e esquecido.

Por causa dela o quase-amor nunca será amor. Paixão fantasma exibicionista póstumo volta para puxar o pé, volta para perturbar.

Sempre acho que confundo os sentimentos. A culpa é dessa louca e imensa distorção entre minha intenção e minha emoção.

Ou tenho ido de mais ao centro da cidade...

domingo, 13 de dezembro de 2009

mulher e Deus


Em mais uma de suas perdas, Raquel se vê estranha, como se nunca antes tivesse perdido... é que não dá para comparar uma dor com a outra. Ignora-se o porquê disso. Seria simplesmente porque não dá para comparar uma pessoa com outra, um amor com outro, um sentimento, um olhar, um cheiro, uma forma de falar? Nada se compara.

A falta de comparação deixa um vazio gritante, faz sua velha sensação de perda parecer inédita, parecer a primeira. Isso acontece por que ele foi o primeiro, lhe deu promessas, carinhos e palavras doces que nunca antes havia recebido e tentou lhe colocar no seu mundo. Ela, Raquel, que há tempos vive num mundo realista, realista fantástico é verdade, deu o que achava que podia dar, deu o que sua confiança lhe dizia para dar: deu seu corpo, seu profundo olhar misterioso, seu sangue feminino, alguns presentes e umas poucas linhas sentimentalóides. Não bastou... mas, me diz, quem foi mais real, mas sincero e coerente em seu contexto? Acho que nisso ela ganhou, acho também que pela primeira vez sua culpa será mínima. Que bom!

Foi tudo muito novo dessa vez. E foi ela quem desejou o novo, buscou o novo e obteve o novo. Acho que não soube o que fazer com ele, mas se esforçou para fazer certinho: seguiu no caminho do novo. Amou novo, se deu novo, ouviu novo, falou novo, fez planos novos, perdeu novo, se desiludiu novo. Poderia ser de novo, mas é um trocadilho pobre de mais. Por isso o estranhamento da perda, coisa tão comum em sua vida.

Dessa vez não sentiu o peso da culpa, porém não pode negar que foi menos sublime. Dar um corpo não é tão belo como dar promessas e planos... corpo do momento fica preso em si; já a promessa, ela é eterna e é por ela que se eterniza um homem, é no ato de proferi-la que está o segredo da imortalidade.

Ela não prometeu: foi somente humana.
Ele prometeu: tornou-se um Deus.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

da [falta de] razão


Vontade de separar as partes do meu corpo só para ver se dói menos do que dói tudo junto. Não adianta. A dor não é física. Há apenas um ponto físico que concentra toda a dor. O resto é fluido e intocável, e por isso incurável; doença de alma.

O que Tiradentes sentiu ao ter o corpo separado em partes? Sentiu dor, decerto; dor maior foi a de se ver abandonado e encurralado por seus companheiros de ideologias inconfidentes. A segunda dor, a de ter o corpo cortado em peças como um boi, decepou também a primeira; para ele deve ter sido então um alívio.

E quem não sente uma pontinha de felicidade na dor? Eu sinto uma plenitude incomum... torno-me a mulher bonita de Vinícius, uma mulher que possui qualquer coisa de triste, qualquer coisa que chore... porém em instantes minha tristeza se dissipa... 5, 4, 3, 2, 1... minha promiscuidade de sentimentos é tamanha. Não permaneço em uma dor por muito tempo: me dá ânsia; como também não fico parada por muito tempo: me dá ânsia; como também não suporto não fazer nada por muito tempo: me dá ânsia; como também esperar o tempo resolver por muito tempo: me dá ânsia.

Será que alguém ousou perguntar a Tiradentes: preferes viver e ser feliz ou ter razão?
Como ele preferiu ter razão, restou-lhe a morte, solução para a vida sem razão.

Eu quero também ter razão. O que é a felicidade de um momento apenas se comparada ao troféu de uma boa razão carregado sempre nuns braços vitoriosos? E se existisse a opção ser feliz e ter razão? Me responderiam os donos da razão: ser feliz é ter razão.

Isso abala um pouco a mulher sem razão que sou e sempre fui e sempre serei... minha falta de razão me obriga sempre a ouvir meu homem, meu coração. Opção não pensada, escolher a vida, ser feliz mais ou menos, ouvir meu coração para chegar numa razão, não verdadeiramente minha, mas uma razão pega de empréstimo, uma mão estendida em tempos de guerra, um cabo onde se segurar em meio a tormenta.

Forma de manter inteiro meu corpo, sem decepar nenhuma parte, pregadas as articulações por pregos cheios de razão emprestada. Para ter felicidade promíscua.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Não posso pintar minhas unhas de vermelho.



Só quem pode são as mocinhas. É que elas pintam as unhas de vermelho e continuam sendo mocinhas; ninguém vê suas unhas vermelhas sangue derramado.

Eu pinto minhas unhas de vermelho e sou... o que?!Vermelho é meu sangue derramado. Vermelho em mim ulula, berra. Apenas uma unha vermelha e estou toda vermelha, toda sangue derramado.Unhas vermelhas em mim parecem pleonasmos, pleonasmos viciosos, daqueles que trincam aos ouvidos.

Sou toda vermelho. Sou toda sangue derramado.Tento esconder com rosa clarinho, renda, base, mas não limpa o vermelho sangue derramado. Esse, nem acetona tira de mim.

Meu corpo é vermelho sangue derramado: Grita alto.
Minha alma é vermelho sangue derramado: Voz rouca de impropérios.

Mas lá bem no fundo sou mocinha rendada. É que debaixo de tanto sangue derramado nem dá para ver que sou mocinha também. Queria não precisar da renda para cobrir o sangue derramado. Mas preciso. E não uso. Deixo o sangue derramado escorrer das minhas unhas para o meu corpo, do meu corpo para as minhas unhas. E para tudo que me cerca, tudo que digo ou dizem ser meu.

Debaixo do sangue derramado minha renda poderia surgir, um dia, mas não. Sangue derramado é essência, e a essência a gente nunca perde (segundo algumas filósofas). O que quer dizer que esse vermelho sangue derramado segue derramado por mais algum tempo, dias, anos, enquanto estiver viva eu.

Até que um dia eu morra de hemorragia.