Dormência. Palavra insensível e caleidoscópica colada numa pele triste e sonâmbula.
Na verdade não sinto. Vejo movimentos de braços abraços e mãos em meu corpo mas ele não me pertence.
Sou impressionável; sempre pensei em quanto nosso corpo não é nosso, quando não queremos envelhecer e envelhecemos, quando não queremos adoecer e adoecemos. Ferreira Gullar um dia me provou a verdade do fato: teu corpo muda/ independente de ti. Nunca mais esqueci. E decidi não mais ser dona desse lar de alma. Só a alma me pertenceria.
Sou impressionável; meu corpo deixou de ser meu definitivamente. Nada me toca, não sinto nada. Como uma ferida de lepra. Insensível. Falta ânimo, anima, alma.
O corpo tornou-se um templo vazio sem seu morador. Enquanto durmo, ele vaga em algum Hades corpóreo, a alma fica, inane e desabrigada, como se houvesse um erro na criação, na fôrma e na forma.
Ferreila Gullar provou, mas não abrigou a alma que vagou e desprendeu-se do corpo.

Imagem por
Conrad RosetTeu corpo, Ferreira Gullar
O teu corpo muda
independente de ti.
Não te pergunta
se deve engordar.
É um ser estranho
que tem teu rosto
ri em teu riso
e goza com teu sexo.
Lhe dás de comer
e ele fica quieto.
Penteias-lhe os cabelos
como se fossem teus.
Num relance, achas
que apenas estás
nesse corpo.
Mas como, se nele
nasceste e sem ele
não és?
Ao que tudo indica
tu és esse corpo
– que a cada dia
mais difere de ti.
E até já tens medo
de olhar no espelho:
lento como nuvem
o rosto que eras
vai virando outro.
E a erupção
que te surge no queixo?
Vai sumir? alastrar-se
feito impingem, câncer?
Poderás detê-la
com Dermobenzol?
ou terás que chamar
o corpo de bombeiros?
Tocas o joelho:
tu és esse osso.
Olhas a mão:
tu és essa mão.
A forma sentada
de bruços na mesa
és tu.
Quem se senta és tu,
quem se move (leva
o cigarro à boca,
traga, bate a cinza)
és tu.
Mas quem morre?
Quem diz ao teu corpo – morre –
quem diz a ele – envelhece –
se não o desejas,
se queres continuar vivo e jovem
por infinitas manhãs?