quarta-feira, 12 de maio de 2010

“Me desprendi desse corpo que já nem era mesmo meu”

Dormência. Palavra insensível e caleidoscópica colada numa pele triste e sonâmbula.
Na verdade não sinto. Vejo movimentos de braços abraços e mãos em meu corpo mas ele não me pertence.

Sou impressionável; sempre pensei em quanto nosso corpo não é nosso, quando não queremos envelhecer e envelhecemos, quando não queremos adoecer e adoecemos. Ferreira Gullar um dia me provou a verdade do fato: teu corpo muda/ independente de ti. Nunca mais esqueci. E decidi não mais ser dona desse lar de alma. Só a alma me pertenceria.

Sou impressionável; meu corpo deixou de ser meu definitivamente. Nada me toca, não sinto nada. Como uma ferida de lepra. Insensível. Falta ânimo, anima, alma.
O corpo tornou-se um templo vazio sem seu morador. Enquanto durmo, ele vaga em algum Hades corpóreo, a alma fica, inane e desabrigada, como se houvesse um erro na criação, na fôrma e na forma.

Ferreila Gullar provou, mas não abrigou a alma que vagou e desprendeu-se do corpo.

Imagem por Conrad Roset




Teu corpo, Ferreira Gullar

O teu corpo muda
independente de ti.
Não te pergunta
se deve engordar.

É um ser estranho
que tem teu rosto
ri em teu riso
e goza com teu sexo.
Lhe dás de comer
e ele fica quieto.
Penteias-lhe os cabelos
como se fossem teus.

Num relance, achas
que apenas estás
nesse corpo.
Mas como, se nele
nasceste e sem ele
não és?
Ao que tudo indica
tu és esse corpo
– que a cada dia
mais difere de ti.

E até já tens medo
de olhar no espelho:
lento como nuvem
o rosto que eras
vai virando outro.

E a erupção
que te surge no queixo?
Vai sumir? alastrar-se
feito impingem, câncer?
Poderás detê-la
com Dermobenzol?
ou terás que chamar
o corpo de bombeiros?

Tocas o joelho:
tu és esse osso.
Olhas a mão:
tu és essa mão.
A forma sentada
de bruços na mesa
és tu.
Quem se senta és tu,
quem se move (leva
o cigarro à boca,
traga, bate a cinza)
és tu.
Mas quem morre?
Quem diz ao teu corpo – morre –
quem diz a ele – envelhece –
se não o desejas,
se queres continuar vivo e jovem
por infinitas manhãs?

2 comentários:

  1. afinal, nada nos pertence e tudo é simulacro...
    só me ponho a pensar o quão bom é sentir que tudo é meu ao invés de pensar e pensar na efemeridade das coisas...

    "...Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
    Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,]
    Mas porque a amo, e amo-a por isso,
    Porque quem ama nunca sabe o que ama
    Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
    Amar é a eterna inocência,
    E a única inocência não pensar..."

    Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)

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  2. palavras do Mestre são sempre bem vindas e consoladoras!! ^^

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