terça-feira, 17 de agosto de 2010

Vento

Enquanto os cabelos secavam ao natural sentiu frio no corpo, frio na alma. Sentir frio não é das melhores sensações que um corpo possa sentir. Nem uma pobre alma. Galgou os pés descalços em chão frio e sentiu inteira um arrepio ruim, porém de uma necessidade de morte, pois morrer também é necessário. Às vezes.

Lembrou de Elis dizendo que Os corações viram gelo e, depois, não há nada que os degele e pensou em seu próprio coração, cravado fundo no peito e calado. Lembrava que possuía um quando sentia o arrepio fundo pedindo um pouco de calor, ou um pedaço de cobertor que o valesse, que o aquecesse.

Naufragado como um barco sem vela, encalhado como um navio sem rumo, a última vez que o sentiu não soube se era o seu mesmo que funcionava como um relógio antigo de parede ou se era o dele, tão próximos estavam.

Nunca soube separar o que sentia do que ele sentia. Não havia troca, apenas acompanhamento. Ela obedecia ao que ditava o coração dele, seu coração seguia à risca o outro coração. Por isso não separava os batimentos. Eram os mesmos que cronometravam o fogo e metrificavam o gelo.

Mas corações diferentes não podem bater iguais por muito tempo. A fogueira ou a geleira não são as mesmas. A intensidade do fogo de um pode não ser suficiente para derreter o gelo do outro. E o gelo do outro pode ser por demais intenso e apagar o fogo de um. É o momento em que desejam amar sem cronômetros ou métricas e ter-se apenas os batimentos como marcadores. Se o coração bate ululante ou recusa-se a dar voz.

Sentiu mais alguns arrepios e frio na barriga, enquanto ainda secavam os cabelos. Lembrou-se então que era inverno. E foi fechar a janela aberta.








As aparências enganam/Elis Regina
Composição: Sérgio Natureza/Tunai


As aparências enganam, aos que odeiam e aos que amam
Porque o amor e o ódio se irmanam na fogueira das paixões
Os corações pegam fogo e depois não há nada que os apague
se a combustão os persegue, as labaredas e as brasas são
O alimento, o veneno e o pão, o vinho seco, a recordação
Dos tempos idos de comunhão, sonhos vividos de conviver
As aparências enganam, aos que odeiam e aos que amam
Porque o amor e o ódio se irmanam na geleira das paixões
Os corações viram gelo e, depois, não há nada que os degele
Se a neve, cobrindo a pele, vai esfriando por dentro o ser
Não há mais forma de se aquecer, não há mais tempo de se esquentar
Não há mais nada pra se fazer, senão chorar sob o cobertor
As aparências enganam, aos que gelam e aos que inflamam
Porque o fogo e o gelo se irmanam no outono das paixões
Os corações cortam lenha e, depois, se preparam pra outro inverno
Mas o verão que os unira, ainda, vive e transpira ali
Nos corpos juntos na lareira, na reticente primavera
No insistente perfume de alguma coisa chamada amor.

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